Tal como é regra para todas as espécies vivas, nós humanos estamos
adaptados ao ambiente a que os nossos antepassados foram expostos. As nossas
origens remontam há mais de 2 milhões de anos e desde aí temos sido moldados
pelo meio que nos engloba num processo selectivo muito lento. Mas se há coisa
que nos distingue no Reino Animal é a vontade e capacidade de manipular o
ambiente para melhor servir os nossos propósitos. Esta atitude activa também se
traduziu numa mudança de hábitos alimentares. A grande alteração qualitativa na
dieta humana deu-se claramente há cerca de 10 000 anos com a Revolução
Neolítica. Estava aberta a porta para novos alimentos nunca antes
experimentados pelo Homem e que hoje assumem uma importância central na nossa
dieta.
Os cereais mais comuns, como o trigo, centeio, cevada, aveia e milho,
não são comestíveis sem um processamento que teria sido impossível antes do
Neolítico, altura em que foi descoberto que novas plantas nascem de sementes
lançadas à terra. Eles foram introduzidos na nossa dieta quando o Homem se
dedicou à agricultura e engenhou utensílios de moagem que permitiram obter
farinhas de elevada densidade energética com um esforço mínimo.
Mas
este avanço teve um preço: a Doença Celíaca (DC). Esta patologia é desencadeada
pela ingestão de uma proteína, o glúten, presente no trigo e cereais
aparentados (centeio e cevada). O glúten só recentemente veio fazer parte da
dieta humana e, à medida que alimentava o desenvolvimento de novas comunidades,
debilitava e matava indivíduos que lhe eram intolerantes, especialmente
crianças. Convém lembrar que, à escala evolutiva, 10 000 anos é muito pouco
tempo para gerar uma adaptação significativa a novos insultos externos
compreendidos pelo nosso sistema imunitário como agressores a eliminar.
A Doença Celíaca é uma patologia
inflamatória crónica do intestino delgado que surge em resposta ao contacto com
o glúten em indivíduos com predisposição genética. Embora nem sempre evidente,
a degeneração da mucosa intestinal impede a normal absorção de nutrientes mas o
impacto da DC pode-se reflectir a nível sistémico. Apesar de a Doença Celíaca
estar hoje relativamente bem caracterizada, ela apresenta ainda um desafio para
a clínica e investigação que procuram novas terapias que obviem a fraca adesão
à dieta sem glúten.
Até há bem pouco tempo, a DC foi
considerada uma entidade clínica rara e restrita à Europa, EUA e outros países
desenvolvidos (Catassi e Fasano, 2008). No entanto, novos dados epidemiológicos
apontam para que esta doença tenha uma distribuição universal, tratando-se de
uma das doenças genéticas mais comuns e melhor caracterizadas, com uma
prevalência global na ordem dos 1-2% (Rodrigo, 2006).
O desenvolvimento de testes
serológicos para diagnóstico da doença vieram permitir um screening em larga escala com resultados reveladores. A prevalência
estimada é de 1:70 a 1:200 na maioria dos países desenvolvidos, sendo mais
frequente no sexo feminino numa proporção de 3:1 (Nelson et al., 2009). Em Portugal, julga-se que o valor se situe nos 0,7%
com base no estudo da prevalência em adolescentes com uma idade média de 14±6
anos (Antunes, 2002).
Tabela 1
Sintomas comuns na Doença
Celíaca
(Adaptado de Hopper et al.,
2007)
|
Manifestações
gastrointestinais (clássicas)
Dor abdominal
Diarreia
Esteatorreia
Inchaço abdominal
|
Sintomas
extra-gastrointestinais (atípicos)
Perda de peso
Fadiga
Artralgia, artrite e mialgia
Lesões cutâneas (dermatite herpetiforme)
Depressão e sintomas neurológicos
|
Embora inicialmente se pensasse que se tratava de uma doença com início
na infância, a DC pode ocorrer em qualquer idade, sendo até mais frequente a
partir dos 40 anos (Hopper et al.,
2007). Na verdade, a prevalência parece aumentar com a idade como ficou
demonstrado num estudo Finlandês com uma amostra aleatória de indivíduos acima
dos 52 anos (Schuppan et al., 2009).
A cada vez menor ocorrência de DC na infância deve-se essencialmente à exclusão
do glúten da dieta nos primeiros tempos de vida, uma prática comum desde os
anos 70 nos países desenvolvidos que poderá levar a uma manifestação mais
tardia da doença em indivíduos predispostos (Nelson et al., 2009).
Na Doença Celíaca típica, existem
alterações morfológicas diagnosticantes que são visíveis através de endoscopia.
A mucosa do intestino delgado é geralmente lisa, com uma marcada atrofia das
vilosidades. A biopsia revela ainda um número anormalmente elevado de linfócitos
intra-epiteliais. Todas estas alterações são mais marcadas no intestino
proximal, já que é esta região a mais exposta ao glúten dietético (Liu e
Crawford, 2005).
Os sintomas de DC variam consideravelmente entre pacientes. A dor e
inchaço abdominal são sintomas gastrointestinais comuns, tal como a diarreia
(tabela 1). Esta última pode resultar da menor capacidade em digerir gorduras,
deficiência secundária em lactase (consequente da disfunção dos enterócitos),
má absorção de ácidos biliares e da excreção de fluídos endógenos para o lúmen
intestinal (Binder, 2010).
Uma das principais razões para a
subestimação da prevalência da DC no passado deve-se ao largo espectro de
manifestações clínicas nem sempre evidentes e comuns. Qualquer manifestação gastrointestinal é usualmente descrita como “típica” ou
“clássica”, mas uma proporção substancial dos doentes apresentam apenas
sintomas extra-gastrointestinais menos evidentes (Tabela 1). O modelo “iceberg”
foi proposto no 7º Congresso Internacional sobre DC para explicar a
epidemiologia da doença de acordo com a predisposição genética (Figura 1).
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Figura 1 |
Indivíduos com sintomas atípicos podem não estar a ser devidamente diagnosticados
porque não apresentam manifestações gastrointestinais evidentes. Actualmente,
considera-se que os clínicos fazem um trabalho medíocre no diagnóstico da
doença (Powel, 2008).
São reconhecidos 5 fenótipos da
Doença Celíaca (Powel, 2008):
·
Clássico – pacientes com sintomas e
lesões gastrointestinais evidentes;
·
Atípico – indivíduos com
condições associadas e nem sempre com sintomas gastrointestinais evidentes;
·
Silencioso – pacientes sem
sintomas gastrointestinais ou doenças associadas, mas com algum grau atrofia
das vilosidades evidenciada por biopsia;
·
Latente – não existem
sintomas mas os linfócitos intra-epiteliais no intestino delgado estão
aumentados;
·
Refractário – pacientes com DC
que não respondem a uma dieta sem glúten, estando mais susceptíveis para o
desenvolvimento de neoplasias malignas e ulcerações.
Verifica-se um
aumento da prevalência da doença em associação com outras patologias de cariz
auto-imune. Em indivíduos com diabetes mellitus tipo 1, a prevalência da DC
sobe para 3-8% (Rodrigo, 2006). Especula-se que este facto se deva à partilha
de um fundo genético comum, nomeadamente o tipo HLA, ou à maior permeabilidade
intestinal que favorece a apresentação de antigénios às células imunes intra-epiteliais
(Fasano, 2011). A DC está também presente em 69-90% dos casos de dermatite
herpetiforme (Hopper et al., 2007) e
é comum na anemia ferropénica, muito provavelmente devido à ineficiente
absorção de ferro.
Embora
algo complexo, o mecanismo patogénico da DC está hoje bem caracterizado. Numa
primeira fase, o glúten é digerido em aminoácidos mas, devido ao seu elevado
teor em prolina, a digestão não é completa deixando alguns péptidos intactos
com potencial imunogénico. No entanto, em pessoas saudáveis estes péptidos são
mantidos no tracto gastrointestinal e simplesmente excretados. Por seu lado, os
pacientes com Doença Celíaca partilham um fundo genético que deverá contribuir
para a maior sensibilidade imunológica ao glúten. Mais de 90% dos pacientes com
DC expressam HLA-DQ2 e os restantes, na sua grande maioria, possuem HLA-DQ8.
Estas moléculas do complexo de histocompatibilidade classe II são expressas em
células apresentadoras de antigénios (APCs). Os péptidos de glúten são
apresentados por estas células aos linfócitos intra-epiteliais, os quais são
responsáveis pelo processo inflamatório característico da doença. Os pacientes
com DC têm também outras predisposições genéticas, como uma sobre-produção de
IL-15, uma citocina também envolvida na patofisiologia da doença (Fasano, 2009).
O
passo que reúne menos consenso entre a comunidade científica é o modo como
estas APCs acedem ao glúten alimentar. Alessio Fasano propõe que a gliadina,
uma fracção do glúten do trigo, induza a produção de zonulina pelos
enterócitos. A zonulina provoca a remodelação das tight junctions, abrindo espaços para-celulares que permitem a
passagem do glúten para o espaço sub-epitelial rico em células imunitárias.
Julga-se que a permeabilidade intestinal seja um denominador comum em várias
patologias auto-imunes (Fasano, 2011).
Presente
no espaço sub-epitelial, os péptidos de glúten são modificados pela enzima
transglutaminase tecidual (tTG) que aumenta a sua afinidade para o DQ2 e DQ8
(Fasano, 2009). Consequentemente, quando as APCs captam complexos de glúten e tTG,
os epítopos são expostos à superfície onde activam os linfócitos T e os
estimulam a libertar citocinas pro-inflamatórias que perpetuam a actividade
imunoreactiva. Estas citocinas induzem a produção de enzimas que danificam a
mucosa intestinal e levam à perda das vilosidades (Kagnoff, 2007).
Uma
dieta sem glúten é a terapia mais eficaz e segura na remissão da Doença
Celíaca. Embora se trate de um regime completo e rico em nutrientes, não é
fácil seguir uma dieta sem trigo, cevada ou centeio, muitas vezes presentes de
forma dissimulada nos alimentos e até medicamentos. Para mais, os produtos sem
glúten não estão disponíveis de forma generalizada e são substancialmente mais
caros. De um modo geral, os pacientes mostram uma resposta clínica dramática em
algumas semanas embora a recuperação completa possa levar alguns meses (Nelson et al., 2009).
Para
obviar os problemas inerentes à restrição do glúten, novas terapias promissoras
têm vindo a ser desenvolvidas nos últimos anos. A suplementação com enzimas
digestivas específicas poderá levar à degradação completa dos péptidos
imunogénicos do glúten. É também possível desenvolver variantes geneticamente
modificadas de trigo que expressem proteínas de armazenamento sem potencial
reactivo. Estão também em desenvolvimento terapias imunomodeladoras e de
inibição da tTG que, embora possam apresentar alguma eficácia, não serão
isentas de efeitos secundários tendo em conta um provável efeito a nível
sistémico (Catassi e Fasano, 2008). Da mesma forma, a zonulina é um alvo
terapêutico atractivo e ensaios clínicos já realizados ou em andamento revelam
resultados promissores (Fasano, 2011).
A
Doença Celíaca é um modelo único de patologia imune com base genética e em que
todos os iniciadores, endógenos e exógenos, são conhecidos. No entanto, existem
ainda alguns aspectos obscuros que impedem uma explicação completa dos
mecanismos patogénicos da doença que só agora começam a ser compreendidos. É
expectável que nos próximos anos surjam novas terapias eficazes que permitam
gerir a doença sem necessidade de submeter os pacientes a uma dieta restritiva
de difícil adesão.
Referências
Antunes
H (2002).
“The first study on the prevalence of celiac disease in a Portuguese
population”. Journal of Pediatric
Gastroenterology and Nutrition. 34:240.
Binder
H.
“Disorders of absortion”. In Longo D
e Fauci A, eds. (2010). Harrison’s Gastroenterology and Hepatology.
McGraw-Hill. pp. 165-168.
Catassi
C e
Fasano A (2008). “Celiac Disease”. Current Opinion in Gastroenterology. 24:687-691.
Fasano
A
(2009). “Surprises from Celiac Disease”. Scientific
American. Agosto:54-61.
Fasano
A
(2011). “Zonulin and its regulation of intestinal barrier function: the
biological door to inflammation, autoimunity, and cancer”. Physiology Reviews. 91:151-175.
Hopper
A, Hadjivassiliou M, et al. (2007). “Adult Celiac Disease”. British Medical Journal. 335:558-562.
Kagnoff
M
(2007). “Celiac Disease: pathogenesis of a model immunogenetic disease”. The Journal of Clinical Investigation. 117:41-49.
Liu C e Crawford J. “The intestinal tract”. In Kumar V, Abbas A e Fausto N, eds.
(2005). Robbins and Cotran Pathological Basis of Disease, 7º Edição. Elsevier.
pp. 843.
Nelson
P, Lopes S, et al. (2009). “Doença Celíaca – revisão de conceitos e novos
desenvolvimentos”. Medicina Interna. 16:62-68.
Powel
D.
“Aproach to the patient with diarrhea”. In Yamada T, ed. (2008). Principles of clinical
gastroenterology. Wiley-Blackwell. pp. 323.
Rodrigo
L (2006).
“Celiac Disease”. World Journal of
Gastroenterology. 12:6585-6593.
Schuppan
D, Junker Y, et al. (2009). “Celiac Disease: from pathogenesis to novel
therapies”. Gastroenterology. 137:1912-1933.
Sabendo tudo isto, o que é que aconselhas para o nosso dia-a-dia?
ResponderEliminarOlá Diogo. As limitações da DC são difíceis de contornar e, de um modo genérico e simplista, passam por excluir todas as fontes de glúten e restringir bastante o consumo de lacticínios.
EliminarExcelente texto, Sérgio!
ResponderEliminarObg :)
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